Outubro

Outubro é uma caixa rara, vendo agora, assim, praticamente empacotada, com remetentes. Tudo começou com o show de Madeleine Peyroux no Teatro Castro Alves, dia dois. Um show teoricamente impossível aqui, mas que aconteceu pela força da música africana e de suas ramificações em Salvador, talvez.
Ela aparecia imponente no cartaz em frente ao teatro, num belo vestido, maior que a vida. Olhar distante, perdido em alguma luz de estúdio. Ao vivo, no palco, uma contradição. Uma simplicidade, uma falta de jeito as vezes, talvez por nunca saber o momento de lançar sua voz doce e azeda nos ouvidos de quem estava lá. Nada mais perfeito. Cativantes paradoxos. Ela lança a dúvida como ninguém. Nunca doce, nunca amarga, mas os dois, praticamente sem estar lá totalmente, ela vai fazendo meio que sem querer, sem nunca pedir desculpas. Muitas vezes, ela simplesmente passava a mão nos cabelos, sempre presos. E entre esses lapsos, cantava.

crédito: pablo (flickr)

Foi um show silencioso, cheio de espaços vazios e por isso assustador. Muitas vezes, eu parecia estar sozinho. Outras vezes, ela era que parecia estar sozinha e foi nessa hora que pensei em como seria ótimo chama-la pra dançar. Acho que isso nunca tinha passado na minha mente, e dela não passou. É como as coisas parecem ser nesse, tudo parece não passar de pensamento, de nuvens.

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O tempo passou e a caixa do Outubro criou volume e finalmente cometi meu ato de sanidade anual. Larguei tudo e fui pro Rio ver Björk no tim festival, dia 26. Durante a confirmação, tive algumas surpresas, como a curtíssima temporada da peça O Púcaro Búlgador, do diretor Aderbal Freire-Filho, baseada no livro O Púcaro Búlgaro, de Campos de Carvalho no Leblon, no dia 25.
O Púcaro foi o livro que li mais rapidamente de Campos, talvez por ser a cachaça mais viciante logo nos primeiros goles. Ver a peça foi definitivamente uma felicidadezona. Quase agradeci, no cúmulo do meu lado possessivo, o fato de terem poucas pessoas presentes na plateia em plena quinta feira de noite, afinal de contas, livro obrigatório em colégio e tudo o que é canonizado não presta. Nunca imaginei que a densidade despirocada do Púcaro conseguiria ser colocada numa peça com tanta precisão, é de sentir orgulho. A batida da peça é absolutamente perfeita.

O próximo objetivo da noite foi ver Kassin+2 no Circo Voador. Não conhecia nada dele e devo dizer que gostei muito mais das músicas da fase Domenico+2 e de Moreno+2. Mas não posso reclamar, é muito bom mesmo com gritinhos agudos de Uh. Nessa hora, é claro, o Rio já tinha me engolido com seus dentes de pedra.


- Cara, como faz pra chegar no Pão de Açúcar?
- É só seguir as formigas, meo!



Horas passam e lá estou eu no tim festival, esperando um amor de quase dez anos. Björk, na minha mente, sempre foi um ser abstrato, por mais shows ou clips que eu tenha visto na televisão. Ela sempre foi um conceito. Eu sempre acreditei no fato de que uma banda só pode se mostrar realmente ao vivo, então, por mais próximo que eu esteja do trabalho dela, somente no momento em que ela aparecer na minha frente é que as cartas finalmente estarão na mesa. Dito e feito.

Devo dizer que antes dela, o show de Antony e the Johnsons foi muito errado. Não dá pra ouvir um show intimista quando se está à 20 minutos da terceira guerra mundial. Pois bem.

O show de Björk começou com um hino islandês tocado pelas garotas e garotos dos metais. Eles tocavam lentamente, caminhando pelo palco, preparando o chão pra uma coisa muito rara aparecer. E atravessando o palco com passos rápidos, ela entra, pro delírio começar. Ela pula, usa as mãos, dá lingua, totalmente fora de si e se torna naquele momento minha confirmação: é o ser mais abstrato que já vi na vida. Dentro do seu quadro, dentro das cores que ela mesma escolheu. Tudo isso enquanto canta Earth Intruders.

Em Hunter, ela prende todos os presentes, simplesmente soltando teias pelas mãos. Quadros abstratos perdem. É inesquecível. Nessa hora eu me lembro de um comentário muito bom de Tori Amos, numa entrevista, a respeito de Neil Gaiman. Ela fala que Neil não é um cara barato em suas contribuições. Acho que isso poderia definir um show de Björk. Ela não é barata, não é canguinha. Ela chega e te pesca. Ela dá tudo e faz questão que você exploda milimetricamente.

crédito: eu, pá

O show continuou e ela jogou uma sequência destruidora de músicas: hunter, pagan poetry, unravel, the pleasure is all mine, jóga e desired constellation. O setlist continuou, mas eu já era poeira espacial. Vale lembrar que entre uma música e outra, ela simplesmente falava obrigado da forma mais sutil possível. Sim, ela é má.

É engraçado ver Madeleine e Björk juntas aqui. Eu nunca imaginei ver duas apresentações radicalmente diferentes no mesmo mês. Diferentes e maravilhosas. O silêncio de Madeleine é a explosão de Björk. Acho, então que essas duas fotos resumem tudo muito bem.

Obrigado, moças.