Nos Campos de Carvalho

"É mais fácil eu existir do que Deus." Walter Campos de Carvalho

Esse negócio de pesquisar livro na biblioteca, comprar na submarino ou pedir emprestado é tudo mentira. Isso não existe e é justamente o contrário. Você está pensando no autor e simplesmente seu colega de sala aparece com um livro dele na mesa, durante aquela aula penosa, ou pior, você está voltando pra casa de ônibus e "Nada dura para sempre" de Sidney Sheldon é colocado na suas mãos por uma passageira em pé, e o livro não faz nem questão de ficar de cabeça-pra-baixo (nem sempre as melhores coisas do mundo te procuram, mas ai já é outra história).

Lá estava eu indo pra primeira Feira Hype, buscando quadrinhos antigos ou aquele lp quando, dentre tanta coisa, encontro um livro preto, com várias caricaturas de traço leve e agudíssimas. Peguei na mesma hora e li o título: "Quem tem medo de Campos de Carvalho?" do autor Juva Batella. Girei o pretinho, li a contra capa, pretenciosa, pra variar, mas com um apelo: não falava de um suposto nome conhecido. Nem de longe. Orelhas de livro com uma orelha desenhadas aqui, uma dedicatória ali, a descoberta que as caricaturas agudas eram do próprio Campos lá, uma introdução na direita e uma outra introdução de Mario Prata, com um pedaço que talvez seja propício escrever:
"Tenho a sorte e o orgulho de ter aqui na minha gaveta o último texto do Campos de Carvalho. Aliás, quando ganhei dele, cheguei a publicar no Estadão. Um pedaço de papel cortado pela metade, escrito com a mão já trêmula de quem estava com oitenta anos. Chama-se "Segundo Sonho". Claro, perguntei pelo primeiro sonho. E ele:
- Não tem primeiro sonho.

Pode parecer bobo, mas essa resposta simplesmente me conquistou, parecia dizer tudo, era o resumo do "humor" dele. E assim li boa parte desse livro, em pé mesmo, lá na feirinha.


os desenhos agudos da capa do livro


Voltei pra casa com o nome, sem o livro e comecei a pesquisar: uma comunidade no orkut, outra comunidade no orkut, uma matéria na revista agulha, outra, mais uma no jornal de poesia, no releituras, uma tese de Geraldo Noel Arantes (unicamp) e a obra reunida na livraria cultura.

Descobri também o livro Cartas de Viagem e outras Crônicas, no site da submarino. Como eu não tinha condições de comprar a obra reunida, tratei de conseguir esse. Eu estava cansado dos textos teóricos, das suposições, dos rótulos acadêmicos. Eu queria simplesmente ler o que havia disponível. E começar pelas Cartas de Viagem e outras crônicas foi a melhor opção.

Um trecho da apresentação de Cartas: "Tendo o autor passado desta para melhor - como espero, ou desta para lugar nenhum - como ele acreditava -, este livro é a melhor notícia aos seus leitores (atuais e futuros) desde a publicação da Obra reunida. As crônicas aqui presentes foram selecionadas entre as que foram publicadas no Pasquim em 1972. Breve janela que Walter felizmente abriu, na enorme parede de seu silêncio. Para quem não leu Campos de Carvalho, são um convite e uma introdução aos romances. Para quem já é fã, servem como uma última fatia do bolo que julgávamos ter acabado, achada no fundo da geladeira, atrás da tigela da salada.
São, basicamente, dois tipos de textos. Na primeira parte, as cartas que enviara para si mesmo na viagem que fez a Lisboa, Londres e Paris. Essas crônicas têm um interesse especial, pois se nos livros de Campos de Carvalho os personagens transitam sem parar por lugares como Helsinque, Casablanca, Filadélfia e Lima (mesmo sem sair do lugar), aqui o autor está realmente fora de casa. Não é sua delirante imaginação criando sultões e haréns, mas descrevendo, de verdade, uma viagem de navio, as mulheres inglesas, um quarto de hotel."
...
"Já que é assim, dou apenas um último aviso: os textos de Campos de Carvalho são como a torre de Pisa na teoria do professor Pernacchio. Quando os lemos pela primeira vez, com os pés no chão, achamos que são completamente loucos. Ao nos aproximarmos e entrarmos em sua escrita, no entanto, vamos percebendo que louco não é ele, somos nós ("só é louco quem não é"). No fim, seu texto, parecerá a única coisa reta num mundo que, agora percebemos, está completamente torto. Não digam que não avisei... " Antonio Prata.

Li esse livrinho num tapa. Quis mais, precisava encontrar a obra reunida. Precisava ler A Lua Vem da Ásia (1956), Vaca de Nariz Sutil (1961), A Chuva Imóvel(1963) e O Púcaro Búlgaro(1964). Nessa época, a já famosa Saraiva Mega Store finalmente pisa em Salvador através do Shopping Salvador. Com as promessas de ser uma ótima livraria, lá fui eu procurar a obra reunida no computador de pesquisa... nenhum sinal. Não quis acreditar e fui perguntar pro atendente, só pra sair com a consciência intacta. Ele procura e em dois segundos me fala: "temos sim, senhor, está na parte de literatura nacional, espera que eu pego." Quando eu digo que os livros ficam de sacanagem com nossa cara...

Livro na mão, comecei as leituras. Tinha o prefácio profético de Jorge Amado, fotos do próprio Campos de Carvalho em várias fases da vida (não vou colocar porque são pessoais), a introdução de Carlos Felipe Moisés e é claro, os quatro livros que foram liberados pelo autor (ficam de fora os dois primeiros (Banda Forra - ensaios humorísticos de 1941 e Tribo, de 1954). Demorei três meses pra ler tudo, sendo que A Lua foi lida em poucos dias e o Púcaro também. Vaca e Chuva imóvel desceram com dificuldade. Não digo assim que são ruins, são muito mais doloridos, não é exatamente o Campos que é mais visto e comentado, existe uma sombra nesses dois livros muito forte.

Acho que o principal motivo disso tudo é dar um testemunho de uma descoberta. Não, não é uma descoberta, afinal não pesquisei. Foi um acidente, eu não esperava. Não adianta nem falar que ele se tornou meu escritor nacional favorito, até porque acho que essa coisa de nacionalidade foi invenção de algum camaleão neurótico. Fica, na verdade, o gosto bom de saber disso tudo e acima de qualquer coisa, de compartilhar um pensamento meu e de Walter: Machado de Assis foi meu grande engano!

Viagem ao Sul da Terra

Desfaço as malas, me desfaço. As coisas algumas vezes são assim, parece. Dentro das malas, quase tudo foi usado, poucas coisas inúteis. Quem não gosta da previsão dos tempos? É uma sensação boa trazer coisas novas, por mais simples que sejam: um porta copo bolacha de chopp da eisenbahn, aquelas esquinas de Curitiba, a pedra no tênis, as patas de cachorro nas calças.
Era pra ser uma viagem pra Floripa, com todas as maravilhas de conhecer uma ilha, de sentir aquele frio, de procurar cervejas conceituais, dar uma escapada pra Blumenau, ver a ponte, as belezas raras e fazer algo que eu adoro, sair aleatoriamente pela cidade, seja andando, seja pegando os ônibus locais. Nada de mini-ônibus de turismo pra mim.

Sai do campus da universidade federal no segundo dia e lá fui pegar um ônibus, direto pro centro da cidade. Mercado Público Municipal, a ponte vista do mirante, a figueira centenária, o shopping iguatemi, mercadinhos locais, um bar com chopp de Eisenbahn. Essa foi, basicamente, minha rota por quatro dias.
Bar em Floripa

Ponte

Alguma coisa, mesmo assim, estava errada. Foram quatro dias muito bons, mas em momento nenhum Floripa tirou meu chão. Talvez porque eu tenha ido pra gostar, talvez porque passei tempo demais no google earth e na wikipedia buscando informações da cidade antes de viajar. Me deu a impressão que tudo aquilo que eu li e pesquisei antes não cabia, não encaixava. Ou talvez, e provavelmente deve ser isso, Floripa encolhe demais com o frio do inverno.
Querendo ou não, é uma cidade cheia de praias, com uma relação forte com o sol, uma dependência, eu diria até. 400.000 pessoas moram lá, é uma cidade do interior.

Quem encolheu fui eu. Quem encolheu fui eu.

A idéia então era fugir. Fugir do enea, de Floripa, da viagem como havia sido planejada por dois meses. E assim foi. Uma fuga em conjunto com quatro amigos, após quatro dias na ilha. Joaquim, Lucas, Rafael, João Paulo e Manuel foram então pra bela rodoviária Rita Maria, comprar passagens pra uma tal de Curitiba. "Foi na pedreira que a Mtv transmitiu um dos últimos shows do Iron Maiden com Blaze, na Virtual Tour 1998. Em Curitiba os ônibus funcionam, um amigo meu já morou e falou algumas coisas que não lembro mais e o Bonde das Impostora é de lá." Era tudo isso que eu sabia de lá, era tudo que eu conseguia lembrar.

Passagens compradas, hospedagem no eco hostel garantida, cinco horas de ônibus e paisagens lindíssimas, lá fomos nós pra Curitiba. E lá se vai meu chão. A cidade me desmontou, me encolheu, me fez sumir. Desde o eco hostel até o centro, as quadras, a falta do mar, o frio, tudo isso foi me digerindo. Existe, definitivamente, algo muito forte em certas cidades que me deixam simplesmente feliz de caminhar num centro rodeado de prédios, de praças, de ruas limpas, de pessoas ríspidas e educadas. Foi assim em Belo Horizonte e foi assim no Rio. Era como ser o vento, sensação que só consigo ter poucas vezes. Esquinas aleatórias, direções aleatórias, ninguém te vê e você apenas vai "adiante". Ou melhor, você apenas vai, não existe norte nem sul. Na prática, só tivemos um dia de caminhadas e ônibus em Curitiba, pois chegamos na sexta e só de noite estavamos devidamente alocados, sobrou o sábado inteiro e no domingo de tarde já era hora de voltar pra Florianópolis. E isso foi mais que suficiente.
Oscar Gagá

A casa do moribundo

Curitiba é cidade pra voltar, voltar, voltar. E pra voltar no frio, no inverno. É a capital do frio, que seja. Florianópolis eu quero conhecer novamente, mas no verão, quem sabe assim eu realmente conheço, pois sinto que dessa vez não valeu, tivemos tempo, mas não tivemos momento. E assim segui pro aeroporto e pude novamente constatar que viajar de avião é simplesmente maravilhoso. Porque consigo, como uma amiga me disse "ver o tamanho dos meus problemas", porque consigo ver as luzes de Salvador à noite, tão lindas e o dique do tororó que passou ali e mal deu pra ver, mas vi. E trago na minha mala dois olhos porque Salvador agora, além de ser sempre mágicamente africana, está mais árabe pra mim: a europa do sul, a Alemanha do sul do Brasil me fez ver minha própria cidade de forma diferente.
Pronto, malas devidamente desarrumadas.