Folhas de Pitanga

Conversando com minha mãe, descobri algo que me deixou feliz a respeito de natais passados nas cidades do interior da Bahia. Em várias casas, aquelas com chão vermelho escuro batido, era costume espalhar folhas de pitanga nos corredores, na sala e nos outros cômodos. Eu fico imaginando o cheiro e como devia ser delicioso andar arrastando folhas pelo chão, além de vê-las.

É até uma tentação lamentar esse costume perdido e fazer uma comparação com árvores de plástico com neve de plástico que vendem e compram com cartões de plástico por ai, envolvidas por um pisca-pisca com musiquinha irriante, mas lamentação geralmente soa como um solo de violino chorão e realmente isso quebra qualquer possibilidade de um bom lamento, exceto no cinema. (Deve ser por isso que uma pesquisa da Universidade Heriot-Watt de Edimburgo, na Escócia, afirma que comédias românticas, com aqueles finais felizes, atrapalham os relacionamentos alheios. Onde já se viu um violino triste, na cena do mocinho incompreendido, deixar tudo mais triste, no nosso mundo?).

Pessoalmente não tenho nada contra pisca-piscas, na verdade eu gosto deles tanto em casas quanto nas ruas, mas a musiquinha que faz a alegria de algumas tias e vovós é uma verdadeira falta de ave maria. Talvez fosse muito mais lúdico um natal com folhas de pitanga e pisca-piscas silenciosos no chão. Cheiros, luzes e quem sabe até uma fogueira pra queimar os cds de natal de Simone, afinal ela sim é responsável pelo fim do espírito natalino cristão no mundo contemporâneo.

Ansiedade Teórica

O que eu mais gosto em arquitetura, definitivamente, é a história. Os movimentos, as defesa steórica de projetos, os pitíts... É como se essa essa teoria toda me desse ar e olhos menos gastos. Fico maravilhado pela tentativa dos grandes arquitetos refletirem o espírito do tempo em seus projetos e ao mesmo tempo, sempre achei isso ligeiramente engraçado e megalomaniacozinho (até porque qualquer vontade de colocar profundidade e significado quase que absolutos num assunto nunca me compra totalmente, gerando sempre em mim uma vontade de rir um pouco).

A questão é que adoro livros de história da arte e tive ótimas aulas de arquitetura modernista, mas sempre senti uma lacuna na arquitetura contemporânea, não que a arquitetura contemporânea não deixe de ser uma lacuna, mas bem, você entendeu. Por essas e outras, um livro escrito em 2004 caiu minha mão esses dias e se chama Ansiedade Teórica e Estratégias de Design no Trabalho de Oito Arquitetos Contemporâneos.

O autor, Rafael Moneo, defende no prefácio a necessidade das escolas de arquitetura prestarem atenção na arquitetura contemporânea, nos arquitetos que entrarão no Olimpo dos livros de história. Além de arquiteto, Moneo ensina, e no início dos anos 90 ele deu um curso sobre o trabalho de arquitetos contemporâneos na Harvard Graduate School of Design, portanto o livro é uma compilação dessas aulas, além complementos posteriores. Os trabalhos de Stirling, Venturi e Scott Brown, Rossi, Eisenman, Siza, Gehry, Koolhaas, e Herzog & de Meuron são examinados pela rúbrica da "ansedade teórica e estratégias de design." Moneo usa a palavra "ansiedade" porque o estudo da arquitetura tem sido abordado de uma forma mais próxima da reflexão e discurso crítico do que qualquer desejo de elaborar uma teoria sistemática e realmente faz todo o sentido, afinal a necessidade de refletir e criticar demonstram uma angústia estática e mal discutida o suficiente para não sobrar espaço, ainda, para a sistematização de uma teoria.

Em miudos: quem tem roupa suja pra lavar não consegue dormir cheiroso.

Ainda no prefácio, Moneo dá o testemunho de Venturi citando seu o famoso livro Complexidade e Contradição na Arquitetura. "É um exame cáustico que leva à reflexão crítica; como tal, é uma disquisição (investigação) teórica ou uma expressão de ansiedade teórica, não uma teoria. Em contraste, A Arquitetura da Cidade, de Aldo Rossi, mostra o drama de uma pessoa que, embarcando num ambicioso tratado urbanístico, acaba se satisfazendo em pura catarse pessoal. Nesse ponto da história, apreciamos o livro de Rossi não tanto pela contribuição para o desenvolvimento de teoria tanto pela própria expressão de idéias, pela exemplificação de um arquiteto fazendo uso de palavras." Moneo continua citando os textos de Eisenman e Koolhaas.

O outro termo que o autor explica é "estratégias". Estratégias, do grego, estrategÿ, do alemão estrateghÿ..... bem, estratégias no livro de Moneo se refere "aos mecanismos, procedimentos, paradigmas, e dispositivos formais que são recorrentes no trabalho de arquitetos - as ferramentas com as quais eles dão forma à suas construções. Seja através da manipulação de plantas e seções na arquitetura de James Stirling, ou no desdobramento (chuif) das formas que associamos à Frank Gehry. Talvez seja mais difícil aplicar esse termo à arquitetos como Siza ou Herzog & de Meuron, mas devido à uma caligrafia arquitetônica muito pessoal inicialmente e um desejo obsessivo posterior de alinhar essas arquiteturas com certos materiais, eu acredito que eles podem ser discutidos nas mesmas linhas dos outros."

Após explicar o conceito e a diferença das arquiteturas presentes no mesmo livro, Moneo explica cronologicamente a importância de cada arquiteto escolhido:

1950/1960 - James Stirling: "sua presença foi um convite para conectar o que pode ser considerado o legado linguístico das avant-gardes, ainda vivas no início dos anos 1960, até a fortíssima inclinação por complexidade que veio logo depois. Mesmo sendo pouco discutivo atualmente, é obrigatório começar qualquer estudo da evolução da arquitetura contemporânea com Stirling.

1960/1970 - "Em seguida, Robert Venturi e Aldo Rossi aparecem juntos, Complexidade e Contradição em Arquitetura e A Arquitetura da Cidade foram lançados no mesmo ano (1966), mas o arquiteto americano deve preceder o italiano. A influência de Venturi foi imediata e dominante nos anos 1960 e início dos anos 1970, já o trabalho de Rossi, mesmo bem conhecido na Europa, não se tornou "universal" até o fim dos anos 1970, quando seu pensamento foi disseminado na América. Cada um dos dois ilustrou suas idéias com seus próprios trabalhos. Venturi, com o reino construido como ponto de partida, tentou explorar a disciplina e mostra o quanto resiste à norma e tende em direção ao singular. Em contraste, Rossi tentou estabelecer a disciplina depois de ter decodificado as chavas que explicam a arquitetura da cidade. Ambos influenciaram o pensamento arquitetônico por décadas, e essa influência é sentida até hoje."

1970/1980 - "Um desejo expresso de fazer a teoria preceder a prática caracteriza o trabalho de um arquiteto como Peter Eisenman. Responsável pela teoria atrás do trabalho dos Nova Yorkinos, no livro de 1972 entitulado Cinco Arquitetos, ele foi também a ponta da lança do Instituto para Arquitetos e Estudos Urbanísticos e Oposições, tomando um papel chave na cultura arquitetônica Americana. Algumas vezes mal interpretado mas nunca ignorado, seus escritos teóricos ocupam um lugar proeminente no panorama dos arquitetos influentes que essas leituras tentam descrever."

1980/1990 - "Álvaro Siza e Frank Gehry dominaram a cena arquitetônica nos anos 1980. Com eles, a teoria pareceu dar lugar para uma arquitetura que era explicável através do próprio edifício construído. Mesmo Gehry sendo alguns anos mais velhos, eu apresento Siza primeiro. Sua arquitetura sempre foi admirada, desde o início, quando as revistas italianas o descobriram. Seu trabalho sempre foi seguido com enorme interesse e alguns dizem que ele se desenvolveu sem nunca abandonar os comprometimentos sociais e teóricos dos seus princípios. Levou algum tempo para Gehry se impor, mas seu impacto na arquitetura dos anos 1980 é inquestionável. Seu pragmatismo deliberado, combinado com seu jeito inovativo de lidar com materiais e formas, removeu qualquer deferência (consideração) ao contexto, em pouco tempo fez dele uma referência inquestionável. Nós traçaremos a incrível jornada na qual um arquiteto provocativo e quase-marginal se tornou um favorito das instituições nos anos 1990, a década que viu a definitiva consolidação de sua carreira através de uma corrente de grandes trabalhos coroados pelo Guggenheim de Bilbao.

Interesses teóricos e profissionais mudaram radicalmente nessa década, e a figura de Rem Koolhaas foi um paradigma dessa mudança. Koolhaas queria que os arquitetos resgatassem a racionalidade que era implícita na arquitetura que os promotores estavam construindo, livre de prejuízo intelectual. Lá, ele acreditava, estavam as raízes de um arquitetura que estava viva, não distorcida pelas ansiedades teóricas dos advogados de uma arquitetura culta. Lá estavam as chaves para a arquitetura de um mundo globalizado que não considerava a história com a nostalgia das gerações anteriores. Nova Yorke Delirante, inicialmente publicada em 1978, tem um efeito retroativo (que tem efeito sobre o passado) nos anos 1990 e foi complementado pelo muito popular S, M, L, XL, que instituiu um tipo de livro que dá mais atenção à imagem do que ao texto.

Um contraponto para isso foi o trabalho inicial de Herzog & de Meuron, que proclamava a natureza transcendental dos sólidos elementais. Contato com o mundo figurativo dos artistas minimalistas era evidente, revivendo a tradição que conecta o trabalho de arquitetos ao dos pintores. Herzog & de Meuron tiveram influência imediata nas escolas de arquitetura, e a capacidade deles em lidar com qualquer situação e adaptação às mais diversas circunstâncias explanam porque estudantes continuam a observar esses trabalhos tão de perto. Eles certamente devem ser incluidos nos arquitetos que considero influenciais."


cão guia

Outro dia datei um livro que ganhei por 14 de Janeiro de 2074. Datado para mim com tanto efeito quanto teria 19 de Abril de 1935 ou 28 de Setembro de 2008. É uma trilha que quer tatuar no papel o desejo de marcar a pele com sangue. É cimento mole com assinatura à dedo, tronco de árvore riscada pela pedra, marcas e mapas que nunca levam nada além dos próprios contornos fora de escala (logo, dentro).
Datar o futuro com saudade, com contornos cavados por pedaços do que não me pertence, eu seguro mesmo assim essa pedra com a mão cheia de ossos que não são meus, nem os músculos, e dato em algum canto alguma coisa. Um cão guia amarrado num poste.

onipresentus onibus onipotentus

Após receber um bafo do carro de detetização contra dengue, segui para meu destino em quatro rodas: o pituba r1. O que aconteceu nesse motorizado vermelho e azul pode ter sido apenas imaginação, ou, em contra partida, o mais forte exemplo da onipotência dos ônibus de Salvador, preferencialmente os que possuem bus tv. Afirmo de antemão que agora acredito na declaração de Claudia Leitttte, o bus tv é pra gente que pensa.

Dias atrás eu li uma declaração muito boa de Campos de Carvalho, "cada um tem o Marx que merece." e essa frase ecoou na minha mente até o momento em que, no bus tv, passa um documentário sobre os irmãos marx, pra meu doce deleite. Adoro Groucho Marx e seu programa de auditório. Conhecer a história dos irmãos, ni ônibus, é demais. Pensei comigo: "o detetizador está fazendo efeito."

Logo depois, me sinto como na Grécia Antiga, andando naquelas ruas coloridas e vendo sem querer uma palestra ao ar livre de Platão, que estava de gueri com uns iniciados, debaixo de uma frutífera. O Platão, no meu caso, que estava sentado no banco do ônibus, era o cobrador e o iniciado era uma senhorita toda grande. Eis o diálogo:
- Quando eu fiquei grávida, menino, foi uma emoção. Meu marido assumiu a criança, ai quando fui fazer o teste e vi as duas listrinhas coloridas, eu morri.
- hum..
- E ai veio aquela fase dos desejos. (ela passava a mão no cabelo preso). Quando eu sentia cheiro de milho cozido, eu salivava. Aqueles outros desejos também, ai..
-hummm!
- Mas sabe como é né, comecei a comer feito louca, e cê sabe, eu tenho quadrilzão, sou alta, fiquei toda grande.
- um barril né?
- éééé... é!

>-\o

Eis o conhecimento latente, violento e certeiro. Enquanto essa pérola foi desferida, eu fiquei fora de si. Obviamente nessa hora, no bus tv, rolava um outro documentário, dessa vez sobre o muzenza.
O diálogo entre eles ficou mais baixo e distante, provavelmente começaram a falar grego e dei conta de que eu não era iniciado. A partir daquela revelação do cobrador, a conversa não mais me pertencia, senti vergonha, levantei e saltei. Se a culpa é do detetizador, os mosquitos da dengue morrem felizes.

violado

A aula era tensa e os três professores estavam desapontados com o rendimento da turma. Primeiro um sermão ácido, depois um mais emocionado e triste, o professor estava velho. Se sentia fraco e lento de raciocínio, não sabia o que fazer diante do impasse.
Enquanto ele lamentava, a sala ficava triste num silêncio convencido de que era momento de mostrar vergonha (não necessariamente sentir).
Um violino repentinamente toca a nota mais triste de todas na minha cabeça e o sermão vira a cena hilária do dia, mas com tantas paredes tristes, só quem ouviu o violino ouviu o meu riso.
Estou convencido que a falta de caráter é do violino.

Museus de Salvador


(mapa com museus localizados por números - bolinhas vermelhas - clique para ver em tamanho maior)


(museus listados - clique para ver em tamanho maior)

Um informativo sobre o guia de museus de Salvador está circulando por ai (achei o "meu" no cinema do museu) e acho que vale a pena compartilhar. Tratei de scanear porque não encontrei a versão digital (procurei no bahia.com.br e no ipac.ba.gov.br), portanto, todos os direitos reservados pra quem fez e teve a paciência de construir os prédios no sketchup (aparentemente a programação visual é de Tempo).

São 29 museus espalhados pela cidade:
01 memorial dos governadores republicanos da bahia - praça da prefeitura
02 memorial da câmara municipal do salvador - praça da prefeitura
03 museu da misericórdia - rua da misericórdia, centro histórico
04 galeria fundação pierre verger - praça da sé
05 museu de arqueologia e etnologia da ufba - terreiro de jesus
06 museu afro-brasileiro - terreiro de jesus
07 museu da ordem terceira de são francisco - rua ordem terceira - centro histórico
08 museu eugênio teixeira leal - rua j. castro rabello, pelourinho
09 museu udo knoff de azulejaria e cerâmica - rua frei vicente, pelourinho
10 museu tempostal - rua gregório de mattos, pelourinho
11 museu abelardo rodrigues - rua gregório de mattos, pelourinho
12 galeria solar ferrão - rua gregório de mattos, pelourinho
13 museu da cidade - largo do pelourinho, pelourinho
14 fundação casa de jorge amado - largo do pelourinho, pelourinho
15 museu da gastronomia baiana - praça josé de alencar, pelourinho
16 casa do benin - rua santo agostinho, centro histórico
17 casa de angola - praça dos veteranos, baixa dos sapateiros
18 caixa cultural salvador - rua carlos gomes, centro
19 museu de arte sacra ufba - rua do sodré, centro
20 museu de arte moderna - av. do contorno, solar do unhão
21 palácio da aclamação - av. sete de setembro, campo grande
22 museu henriqueta catarino (instituto feminino da bahia) - politeama
23 memorial do teatro castro alves - praça dois de julho, campo grande
24 museu geológico da bahia - av. sete de setembro, corredor da vitória
25 museu de arte da bahia - av. sete de setembro, corredor da vitória
26 museu carlos costa pinto - av. sete de setembro, corredor da vitória
27 palacete das artes - rua da graça, graça
28 museu náutico da bahia - forte santo antônio da barra, barra
29 espaço mário cravo - parque metropolitano de pituaçu

Quero muito sair por ai nos dias de folga pra visitar museus que não conheço, quem quiser ir, grita, minha corrente.

Panquecas

Panquecas fazem parte do imaginário de qualquer garoto que nasceu nos anos 1980 e assistiu milhões de filmes na televisão, portanto meu caso não poderia ser diferente. Fui pra cozinha agora de manhã com o objetivo de fazer algumas, depois de uma pesquisa na internet por receitas ontem de noite (eu esqueci como se faz panqueca pelo cook club way).

Após ler algumas receitas, consegui um resultado bom pra versão 1.0 das panquecas, então lá vai:

um copo de leite
um copo de farinha de trigo
um ovo
três colheres de óleo
três pitadas de sal

Bata tudo no liquidificador e depois espere cerca de 10 minutos pra que a massa fique menos cheia de bolhas de ar. Aqueça a panela anti aderente em fogo baixo e pronto. E por favor, não esqueça das três colheres de óleo, são elas que fazem a massa não grudar.

Recomendações de cobertura pra panqueca: nutella, gotas de limão e açúcar, manteiga e queijo, nutella e nutella.

dakota do sul

As carambolas astecas são azuis. Todas. Não são meramente frutas de quintal, são star fruits, possuindo requinte tal para brotarem da terra, que por sinal não tem forma de estrela ou perfume de rosas.
Outro dia uma montanha me pediu pra apagar a boca de George Washington, mas não sou americano, muito menos moro na Dakota do Sul. Deve ser difícil ser montanha da terra, com eiras e beiras para todos, menos para ela mesma.

dejeto desejo

Os meninos (lucas, rafa, joaquim e jp), resolveram fazer uma coisa: materializar em um projeto arquitetônico a compreensão de um texto.

"para que não nos sintamos tão sós, tão sós, não nos sintamos assim, tão sós."
antônio brasileiro

O projeto seria uma residência num terreno da ladeira da barra, a foto do terreno pode ser vista aqui: wikimapia com terreno ao centro da imagem

Além da proposta, do uso e local, a forma de apresentação foi livre, o que possibilitou pra cada uma abordagem bem específica. No meu caso, preparei um modelo 3d, renderizei 5 imagens e imprimi num papel.

Aqui estão elas: (clique nelas pra ver maior)














Após impresso, levei meu A4 pra apresentação e comecei a pensar sobre como articular a forma com o texto, porque parando pra pensar, no momento em que a forma foi criada, não houve um esforço meu pra tentar traçar realmente algum paralelo com a frase de Antônio Brasileiro. A única sensação que eu tive foi de jogar uma forma que caísse sobre o terreno proposto, que é muito acentuado.

Pensar sobre alguma coisa pra mim envolve segurar alguma coisa nas mãos e a essa altura, meu A4 já era uma bola amassada. E dai surgiu um pensamento: amarrar o texto no projeto através de uma contradição.

Comecei imaginando o quão doentio pode ser essa frase de se sentir só e pensei na pessoa mais solitária do mundo. A partir dai, a todo "sós" que Antônio Brasileiro escreveu na frase, eu via apenas o sinal morse clássico de "s.o.s." que seria algo como "save our souls" ou "save our ship". Ou seja, eu encarei que o tempo todo o cara da frase estava pedindo ajuda, de forma desesperada, de forma extrema.

Tendo essa sensação de angústia amarrada, o próximo passo foi pensar num ato angustiado de solidão e me veio a mente o lixo. A cena de jogar um lixo no chão representa muita coisa, seja o fim da utilidade do objeto ou, numa escala maior, o fim do cuidado. Não se sentir cuidado é uma forma de se sentir só e pro nosso amigo angustiado e mais solitário do mundo, a vida não ofereceu muito cuidado.

Com isso em mãos, eu tentei então relacionar os declives de Salvador com o lixo. Muitas encostas da cidade estão cheias de lixo, cheias de dejetos. A forma então passou a ter esse significado forte de dejeto na encosta. O desejo de dejeto. Foi uma forma abandonada naquele terreno, ou muitas formas jogadas, não necessariamente uma única (mesmo que tendo apenas um princípio de aço e vidro retorcido, poderiam ser distintas).

As vezes, quando passo na Vitória, vejo uma casa antiga, aquela perto da árvore gigante onde você tem que sair da calçada por causa do diámetro do tronco e fedor de xixi. Essa casa é linda e abandonada, com um telhado meio vermelho escuro com fungos e lixo e muitas grades num dos muros, juntamente com estátuas e cadeiras e banheiras. A sensação de passar por ela é muito própria, até o clima parece ficar mais gelado. (claro, árvores na vitória, altura e o mar por perto ajudam o frio). E aqueles portões e grades no canto sempre chamam minha atenção. Sempre eles lá, recebendo chuva e ficando mais gastos.

Voltando ao terreno da barra, temos cara solitário, lixo, abandono e dejeto, numa abordagem extrema da frase. Falta a contradição.

Nesse terreno existe uma árvore. Uma mangueira. Ela é linda, viva e frondosa. E ela é só. Ela está entre muros e perto dela, só existe mato. As raízes dela saem por ai, sem ninguém ver. As raízes dela saem por debaixo da terra.

Por mais dejeto que a forma pareça, ela também está em alguns momentos debaixo da terra. E ela vai se alongando ao descer o terreno e ao mesmo tempo, permitindo reformas futuras. Um dejeto com raízes. Por mais isolado e jogado que pareça, existe uma intenção no personagem de não se sentir tão só e isso não é visto, isso é debaixo da terra. O que pode ser feito para que a gente não se sinta tão só? Raízes.

Então temos dejeto e árvore, convivendo na mesma terra. O ápice do lixo, enquanto inutilizável ao lado de algo tão vivo e útil. Ambos sós. A falta de desejo e o desejo, o dejeto e o desejo.

Mas.. como o cara faz pra entrar e sair da casa? Eu sei lá, o cara é doido.

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O mais curioso é que esses conceitos só apareceram depois da forma pronta. Outra coisa muito curiosa é que muitos deles só apareceram porque eu fui o último a me apresentar, o que significa que eu ouvi todo mundo e pude roubar, reciclar e adaptar idéias existentes.

sinal vermelho

Sinal vermelho no campo grande. De um lado, 30 japoneses esperam na calçada a luz verde enquanto atravesso a rua sem carros passando.

Quero pedir desculpas a todos eles, por minha falta de educação.

rua.mp3

motivos levam a uma seleção musical pra viagens: tirar o tédio da passagem das horas, dividir com alguém ou continuar ouvindo o disco super bonder. motivos levam a abandonar a seleção: cd arranhado, outra cola maluca, botão do mp3 player que quebra ou um toca fitas faminto. uma sensação, entretanto, é batata: se por algum motivo essa seleção musical é, depois de meses, revisitada, a viagem também será. é como se a música fosse mais uma camada de tinta nas casas, o paralelepípedo roubado no chão da rua ou aquela pedrinha do rio que cortou seu pé. ou aquele sorriso.

ontem isso aconteceu comigo, consegui ouvir novamente um pacote de músicas que estava num mp3 player tecnicamente quebrado, que reviveu em plena sexta feira santa. músicas selecionadas a dedo pra uma viagem que ficaram paralisadas desde a constatação da morte.

mas naquela hora eu não estava ouvindo cardigans ou stevie wonder: estava vendo a rua, a cidade, o rio, a bicicleta, o sorriso. a música não era apenas mais segundos contados um a um. era um pedaço da minha viagem, pois era imagem. visível, palpável, pedaço. quando andamos numa rua, não pensamos no tempo que isso toma, seja cruzar quarteirões, seja subir a ladeira. ao mesmo tempo, não dá pra ver uma casa sem que os segundos sejam contados um a um. não seria verdadeiro falar que a casa apenas usa o tempo, ou que o tempo é menor, por mais tentador que pareça, mas que a música é tanto espaço quanto tempo, assim como a casa. Como não dá pra tocar a música, sobram as ruas, as casas, as bicicletas e os sorrisos. E por isso mesmo, ela toca tudo.

São Maiden

Fiz uma viagem duplamente necessária: ver o Iron Maiden em São Paulo. O Maiden é coisa querida e acompanho desde 1995, ano do X-Factor e em 2001 fui ver a banda no rock in rio 3. Ou seja, era meu segundo show, com o agravante de, dessa vez, eles estarem com um set list dos sonhos, daqueles que eu imaginava ver ao vivo babando no vhs do maiden england ou do live after death.

Chegando na terra, o primeiro passo foi descançar um pouco antes de ir pra primeira parada: a Augusta. Eis que o rádio é ligado e road to nowhere, do talking heads começa a tocar, instantaneamente. Meu cérebro deu um nó. Não fazia sentido, era uma rádio e pior, road to nowhere foi a última música que ouvi em Salvador, antes de viajar. E foi a primeira que ouvi em São Paulo. Toda aquela mitologia básica de talking heads / nova york / são paulo / cosmopolita viraram um pirão na minha cabeça e eu pensei: "Essa cidade tá de chamego comigo."



Após o choque e apreciar a música, partimos todos pra Augusta, comer uma fatia de pizza. Que pizza. Não me assusta agora todas as questões políticas de São Paulo acabarem em pizza, se fosse em salvador, tudo acabaria em acarajé, mesmo que minha preferência seja abará molhadinho. Nesse meio tempo, andei de metrô e percebi como as pessoas adoram mochilas também, todo mundo usava uma, teenage mutant ninja turtles underground.

O segundo dia foi dedicado à conhecer a paulista e todas as suas artimanhas, meo. Lá estava eu e amigos, andando, vendo os prédios, procurando biscoitos koala e sabendo que no fundo, eu ia ter que me encontrar com ela. Com Lina, em forma de trocinho masp.
gazeta

Passei pelo masp, mas fingi que não vi. Fiz doce, afinal ia custar 15 reais entrar e dia de terça feira é de graça. Não dessa vez, abelhinha. Segui o caminho e fui conhecer a cultura. A dor ia ser parecida, mas pelo menos é de graça. Sofri, mas consegui sobreviver.
para

A noite foi novamente da augusta. Voltar andando em direção ao metrô, às duas horas da manhã pela augusta, é revelador. Vi uma cena que ficará pra sempre na primeira impressão de uma cidade cosmopolita. Vejo uma garotinha no meio da pista, entre os carros. Ela está com duas garrafas de cerveja. Na frente dela, tem um mendingo de paletó correndo. A garotinha então joga uma garrafa nas costas dele. Ambos continuam correndo e ela joga a segunda garrafa. Isso aconteceu em menos de 30 segundos. E ninguém ligava.

parábola

rasante na sua frente, por todos os lados, eles nunca temem riscar o ar. meio kamikaze, porque é sem saber. é de chamar atenção quando um pássaro passa perto de carros parados ou em movimento. bandos.

um pássaro desliza no asfalto

dois pássaros cruzando a rua, nunca entendi porque eles fazem isso. tem tanto ar, tão pouca terra. mas pareciam hipnotizados pela parábola, um atrás do outro. pista de velocidade, carro vermelho arrasante.

um dos pássaros desliza no asfalto. e me deu a impressão que ele não morreu, logo, também não viveu da mesma forma como estamos acostumados. E me deu uma pontada, eu morri. pra ele, um canto de asfalto, num desses canteiros esquecidos e o vermelho pra sempre. lembro de um amigo que deixou o passáro no sol amarelo preguiçoso da cozinha. uma oferenda esquecida e todas as contradições que isso implica. quem morreu foi meu amigo. seu pássaro viu apenas o amarelo. e qualquer cor mais, todas as nossas, daquelas que pássaros carregam nas penas, de fazer inveja a qualquer Picasso. Pra eles, as cores. Pra nós, a morte e a inveja.