cão guia

Outro dia datei um livro que ganhei por 14 de Janeiro de 2074. Datado para mim com tanto efeito quanto teria 19 de Abril de 1935 ou 28 de Setembro de 2008. É uma trilha que quer tatuar no papel o desejo de marcar a pele com sangue. É cimento mole com assinatura à dedo, tronco de árvore riscada pela pedra, marcas e mapas que nunca levam nada além dos próprios contornos fora de escala (logo, dentro).
Datar o futuro com saudade, com contornos cavados por pedaços do que não me pertence, eu seguro mesmo assim essa pedra com a mão cheia de ossos que não são meus, nem os músculos, e dato em algum canto alguma coisa. Um cão guia amarrado num poste.

onipresentus onibus onipotentus

Após receber um bafo do carro de detetização contra dengue, segui para meu destino em quatro rodas: o pituba r1. O que aconteceu nesse motorizado vermelho e azul pode ter sido apenas imaginação, ou, em contra partida, o mais forte exemplo da onipotência dos ônibus de Salvador, preferencialmente os que possuem bus tv. Afirmo de antemão que agora acredito na declaração de Claudia Leitttte, o bus tv é pra gente que pensa.

Dias atrás eu li uma declaração muito boa de Campos de Carvalho, "cada um tem o Marx que merece." e essa frase ecoou na minha mente até o momento em que, no bus tv, passa um documentário sobre os irmãos marx, pra meu doce deleite. Adoro Groucho Marx e seu programa de auditório. Conhecer a história dos irmãos, ni ônibus, é demais. Pensei comigo: "o detetizador está fazendo efeito."

Logo depois, me sinto como na Grécia Antiga, andando naquelas ruas coloridas e vendo sem querer uma palestra ao ar livre de Platão, que estava de gueri com uns iniciados, debaixo de uma frutífera. O Platão, no meu caso, que estava sentado no banco do ônibus, era o cobrador e o iniciado era uma senhorita toda grande. Eis o diálogo:
- Quando eu fiquei grávida, menino, foi uma emoção. Meu marido assumiu a criança, ai quando fui fazer o teste e vi as duas listrinhas coloridas, eu morri.
- hum..
- E ai veio aquela fase dos desejos. (ela passava a mão no cabelo preso). Quando eu sentia cheiro de milho cozido, eu salivava. Aqueles outros desejos também, ai..
-hummm!
- Mas sabe como é né, comecei a comer feito louca, e cê sabe, eu tenho quadrilzão, sou alta, fiquei toda grande.
- um barril né?
- éééé... é!

>-\o

Eis o conhecimento latente, violento e certeiro. Enquanto essa pérola foi desferida, eu fiquei fora de si. Obviamente nessa hora, no bus tv, rolava um outro documentário, dessa vez sobre o muzenza.
O diálogo entre eles ficou mais baixo e distante, provavelmente começaram a falar grego e dei conta de que eu não era iniciado. A partir daquela revelação do cobrador, a conversa não mais me pertencia, senti vergonha, levantei e saltei. Se a culpa é do detetizador, os mosquitos da dengue morrem felizes.

violado

A aula era tensa e os três professores estavam desapontados com o rendimento da turma. Primeiro um sermão ácido, depois um mais emocionado e triste, o professor estava velho. Se sentia fraco e lento de raciocínio, não sabia o que fazer diante do impasse.
Enquanto ele lamentava, a sala ficava triste num silêncio convencido de que era momento de mostrar vergonha (não necessariamente sentir).
Um violino repentinamente toca a nota mais triste de todas na minha cabeça e o sermão vira a cena hilária do dia, mas com tantas paredes tristes, só quem ouviu o violino ouviu o meu riso.
Estou convencido que a falta de caráter é do violino.